Último Carnaval
Último Carnaval

Último Carnaval

Bom, acho que já não temos mais muito o que falar, não é mesmo?

Já joguei fora todas aquelas suas fantasias. Botei no lixo tudo aquilo que, um dia, você me fez acreditar. Hoje é quarta-feira e, enfim, te vejo por detrás das cinzas. Já consigo rever a tua origem e a tua verdade estampada na tua cara. E o pior e que essa sua versão eu nem conhecia tão bem. Já estou em casa e já me despi de tudo. Já me livrei das plumas e dos paetês. De quebra, estou abandonando todo o seu cinismo e tua sordidez. No quesito desfaçatez você foi nota dez. Aliás, você conseguiu ultrapassar todos os limites da falta de humanidade. Preocupava-me tanto com o seu bem-estar e com as suas vontades que não reparei nas suas máscaras. Fez-me de trouxa todo esse tempo e eu caí. Acompanhei teu desfile de cabo a rabo. Vivi com intensidade a sua falsa alegria. Cai na tua folia e tudo que recebi em troca foi desamor, desafeto. O teu cinismo não tem perdão. Você já apresentava um novo enredo e eu totalmente sem noção, ainda dançava ao som do teu maldito samba-canção. Não percebi a nossa completa falta de harmonia

Talhei na minha alma o teu nome no carnaval. Você dizia que eu era a sua cabrocha, a única que rodopiava em volta do teu coração. Fui teu par pela avenida durante anos, ensaiei os teus melhores passos. Quis ser digna da tua valsa, mas você me tonteou, abusou de mim. Não percebi que a cada rodopio que você me dava, enquanto meus olhos giravam a tua procura, você já bailava em outra agremiação. Você me distraiu e foi intencional. Você fez de proposito. Você conhecia o tamanho do meu amor. Mas mesmo assim, sua ideia era me rebaixar para o grupo de acesso. E ainda que  eu me esmerasse e o meu desfile fosse impecável e digno de todos os louvores, você já estava decidido: próximo ano, nós não estaríamos na mesma escola. Nossos corpos não se movimentariam ao som da mesma bateria.

Nua, na sala do nosso barraco, a espera improvável do teu retorno, meu corpo ainda respirava carnaval. Estava cansada, porém extasiada. Você sabe que a Avenida, que aquele espaço é o meu palco. Fui mais uma vez ovacionada. Saí nos braços do povo, como sempre. Espero o ano todo, me preparo para aquele momento e você sabe como isso é importante para mim. Não havia sido como sonhei. Estava feliz, ali era meu habitat natural, confortável e plena – por fora. Do lado de dentro, era só farrapo, pedaços de pano a chacoalhar sem conformidade. Desiludida e arrebentada. Coração em desalinho, completamente destruída pela tua sórdida serenata.

Passei a te maldizer. Descuidei do nosso lar. Cruzei a linha que separa o amor do ódio, queria pisar nas tuas lembranças com a mesma desenvoltura que eu pisava naquela Avenida. Aquilo tudo ali me lembrava você. Você sabe o quanto me dedico ao carnaval. Nos conhecemos no carnaval. Você também ama o carnaval. Você só não me ama mais. E isso você só me fez perceber agora. Botei em risco coisas que me são, de fato, relevantes. Você conseguiu limitar o meu olhar e o meu lugar. Fiquei de mãos atadas e desprotegida. Você sabe que foi na cadência do seu compasso que eu me refiz, anos atras. Você me fez acreditar em cada palavra cantada ao pé do ouvido. Você me iludiu e eu me enganei. Achei que seria para sempre o meu comparsa, meu amigo, meu homem. Acreditei em cada refrão proferido por ti, cada estrofe desse teu samba morno e desbocado. No laço dos seus abraços eu me perdia e me achava diariamente. Os dias de ensaios na quadra se transformavam quando você me assistia. Lembra? O teu sorriso me aplaudindo era tudo que eu precisava.

Eu dançava e evoluía e não tinha som. Na minha cabeça um vazio silencioso. Esse silêncio me amedrontava e me dava garra ao mesmo tempo. Meu olhar se perdia na multidão, tentando te achar. Dentre milhares de rostos, eu me importava com o seu. Era para você que eu dançava e me exibia. Você nem sequer se importava mais.

Esse ano, eu sambei com a minha alma porque meu corpo já não me pertencia mais. Você me tirou tudo. Eu tive que te superar em nome daquilo que eu mais amo. Minha carne negra tremia a cada movimento, mas me mantive firme. Não me poupei um segundo. Não deixei transparecer. Permaneci linda e confiante. Era a passista mais observada e clicada daquela noite. Risquei com a ponta do meu salto cada centímetro daquele chão de cimento duro. Com o mesmo salto, escrevi meu nome. E com o coração sangrando, conduzi minha escola ao topo do reino de Momo.

Agora é pensar no próximo ano. Sem você. Pensar no próximo enredo. Virar a página. Haverá saudade, muita. Não terei mais sua voz ao fundo, escrevendo e cantarolando suas rimas no canto da sala. Não te terei batucando na caixa de fosforo, tentando encontrar teu melhor som. Mas, não foi minha escolha. Cansei de viver por ti, apenas.

  Fiquei sabendo que você continua por aí. Mesmo não querendo, ainda sei dos teus passos. As pessoas ainda me contam sobre você. Elas ainda me associam a você e vice-versa. Acho que elas pensam que ainda temos alguma chance de fazer um belo carnaval juntos, um dia, de novo. Duvido muito. Não acredito nisso mais, não! Fiquei sabendo também que você tem tocado em várias partes, está mais conhecido e solicitado e que tem carregado sua música por lugares distantes e diversos. Desejo-lhe sucesso e sorte, mas não tenho a intenção de te ver mais. Foi difícil esquecer do teu cheiro, ainda sinto o aroma e o frescor do teu suor. Decorava cada gota expelida pelos teus poros. Essas lembranças ainda me causam sensações que não me fazem bem, que eu não gostaria de revivê-las frequentemente. Engraçado que, não muito tempo atras, era tudo que eu precisava para viver. Tudo isso me fazia tão bem. Eu vivia pela tua presença. Mas acho que passou. Eu acho que agora eu, finalmente, aprendi a seguir outros blocos, a escutar outras batucadas. Não vou deixar que qualquer malandro de beira de boteco me machuque de novo com promessas levianas, tiradas do fundo de um copo de pinga barata.  Não pretendo usar essa sua fantasia desastrosa novamente. Fico feliz de estar seguindo a minha própria revoada. Hoje, eu me vejo mais empenhada em realinhar meus movimentos, estou aprendendo novos passos e você já não cabe mais aqui. Já segui em frente, e hoje, a prioridade e cadenciar as batidas do meu coração na direção daquilo que não me detém.

One comment

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *

Wordpress Social Share Plugin powered by Ultimatelysocial
Facebook
Instagram
Twitter