Sua Casa
Sua Casa

Sua Casa

Essa casa já tinha sido nossa, na verdade.  Já havia subido e descido aqueles degraus tantas outras vezes que mais uma, menos uma vez não haveria de fazer qualquer diferença. Algo me dizia que dessa vez faria toda diferença. Mas ainda assim, insisti. Para mim, ainda não tinha sido o final. Aliás, nem conversamos sobre finais. Que final foi esse? Sobravam coisa dentro de mim que ainda lhe pertenciam. Nos pertenciam. Precisava saber se ainda existia algo meu também dentro de você. Não podia ter sido assim: simples e rápido. Nada conveniente. Pelo menos, não para mim. Achei que estávamos no auge. Achei que estávamos na mesma pagina de um livro que ambos amávamos ler.

Tudo, para mim, ainda fazia sentido.

Dessa vez precisei tocar a campainha. Essa ação não me era comum. Afinal sempre tive as chaves dessas portas. Aliás, não só dessas, como de todas as outras. Nunca precisei sequer bater em nenhuma delas. Ainda que você não estivesse. Tínhamos a permissão de nos invadir, se necessário fosse. Não havia portas reais que nos impedisse de nos entrar, inclusive. Nunca aqueles degraus, que me eram tão familiares, me fizeram tremer por ter de subi-los. Mas eu experimentava um novo sentimento. Tinha uma outra sensação pairando no ar. Subir aqueles degraus, havia tomado uma nova conotação. Estranho, porque subi-los, sempre havia sido tão fácil, até ontem. Tinha um outro significado enfrentar aqueles degraus. Hoje já não sei que sentimentos são esses. Mas eu precisava encara-los, por mais que eles me parecessem com as mais altas das montanhas, não importava a quantidade de passos ou a altura deles em si. Eu tinha que encara-los. Era a sua casa, eu sabia bem disso. Bom, pouco tempo atrás havia sido também minha.

Os tais degraus já tinham ficado para trás.

Entrei sem a sua permissão. Afinal sempre soube onde você escondia as chaves. Estavam elas lá, embaixo do capacho, bem no canto superior a direita. Sabíamos cada mania um do outro. Pensamentos eram descobertos antes mesmo que eles fossem expressos ou esboçados. Desvandavamos-nos através de um gesto qualquer, de uma fala repetida, de um brilho no olhar, de um toque na pele. Mesmo com as pernas bambas, me obriguei a entrar. Era a sua casa, eu sei.

 Entrei e me deparei com tudo aquilo que sempre sonhamos juntos. Tudo ali tinha o nosso toque, o nosso jeito. Pensamos em cada canto daquela casa juntos. Mas hoje, ela era a sua casa. Cada canto, cada quadro, a sua poltrona preferida, os seus CDs, os vinis clássicos e antigos, que eu tanto tinha ciúmes. Sempre achei que você cuidava melhor deles do que de mim. Talvez eu não estivesse tão errado. Olha onde eu vim parar? Era a sua casa. Fui até o seu quarto. Não resisti. Olhei cada esquadro, cada metro quadrado, milimetricamente pensado por nós. Não deveria, mas ainda me via ali. Sentia que pertencia ainda aquele lugar. Sabia que você ia demorar a voltar para casa, por isso tomei a liberdade de aparecer sem ser convidado. Precisava tirar minhas ultimas conclusões, encerrar alguns ciclos.

Eu tinha a sua vida memorizada, gravada e cronometrada. Talvez esse também tenha sido o meu erro. Sabia muito de você e bem pouco de mim. Passei um bom tempo parado e admirando aqueles cômodos lindos e vazios. Na verdade, eu era quem estava completamente esvaziado de voce, da tua presença, do teu gosto, da tua carne. O teu cheiro era o meu vicio Era ainda difícil de acreditar em tamanha brutalidade. Foi tudo para o espaço de forma tão abrupta. Ainda me sentindo um recém-nascido, prematuramente arrancado do ventre protetor de sua genitora. Para mim, ainda faz pouco sentido. Fiquei triste, de pé, parado, olhando e lembrando de todo o tempo que passamos juntos ali dentro. Do tempo que éramos um. Ora eu dentro de você, ora você dentro de mim. Você nem precisava estar realmente dentro de mim para eu saber que seu lugar era me movimentando as minhas entranhas. Era dentro de mim que você pertencia. Eu costumava também ser a sua casa e vice-versa. Algo me dizia que eu não deveria estar ali, muito menos sem a sua permissão. Se você souber, talvez nunca mais me perdoe.

Espero que você um dia possa me perdoar, seja lá por qual motivo você tenha começado a me odiar. Para mim, ainda está tudo meio turvo, obscuro e desforme.

Espero que você me perdoe por ter dançado no seu chuveiro enquanto você não estava presente. Espero que me perdoe por me deitar na sua cama sem que você estivesse também nela. Espero que você me perdoe por ter passado aquela tarde sozinho na sua casa. Aquela era a sua casa. Mas também já tinha sido minha.

Queria te sentir como há tempos não te sentia. Tirei toda minha roupa. Queria estar livre. Mantive-me nu durante um bom tempo, no seu quarto. Andava de cá para lá, aturdido e sem esperanças de que eu pudesse te recuperar, te demover da ideia de se desfazer da gente. Ficava ali alisando o teu lado da cama, procurando razoes infinitas que te fizesse enxergar o tamanho da minha devoção.  Por fim, me cansei. Dormi. Nao sonhei. Desde que sai da nossa casa, hoje sua casa, nao tenho sonhado mais. Eu te garanto, sonhava todos os dias, enquanto ali morei.

Aquela era a sua casa, aquela era a sua cama, aquele era o seu quarto. Tudo ali te pertencia, menos eu. Menos eu! E eu sabia disso. Ainda nu, fiquei ali alimentando a ideia de que você chegaria e voltaríamos a usar aquela cama da forma que só a gente sabia usar. Aquele era o nosso templo.  Era ali que a gente se conectava. De todas as formas de comunicação que o homem já inventou, o sexo era a nossa melhor forma. Sem uma palavra sequer, a gente dizia muita coisa, a gente dizia tudo. Aquela era a nossa língua preferida. Naquela hora, era só eu e você.

Levantei-me. Precisava de um banho. Aquela sensação de perda me paralisava de uma forma congelante e aniquiladora. Fiquei lá, debaixo da ducha me lembrando de todas as vezes que você invadia a banheira, na tentativa de me invadir. Eu sempre me rendia a você. Nunca demonstrei qualquer tipo de resistencia ao teus encantos. Chorei copiosamente porque percebi que aquilo não voltaria a acontecer. Nunca mais. Você não me queria mais. E aquela era a sua casa. Era a sua casa.

Depois do banho, coloquei seu roupão. Tudo tinha o seu cheiro. Era tudo tão perfeitamente seu, tudo ali endereçava a ti. Doía te sentir. Doía porque sabia que aquilo não passava de uma ilusão. Eu te sentia, mas aqueles objetos eram somente uma pequena porção de você. Eu queria você por inteiro. Aos poucos foi me vindo a ideia de que cada vez que eu chegava mais perto de você através das suas coisas, mais longe era a sua vontade de tornar a dividir aquilo tudo de novo comigo. O seu cheiro era o que me mantinha lúcido. Até a sua colônia, que você guardava dentro da sua gaveta, era motivo para que involuntariamente uma lágrima fosse expulsa de mim. Eu vivia uma catarse continua, um enxurrada de emoções a cada lembrança da nossa vida a dois.

Eu estava me distanciando de você. Estava quebrando meus pratos e desfazendo meus laços. Você sequer me deu a chance de um adeus. O tempo passou, mas ainda tinha tempo de me despedir de você através das suas coisas. Não estava na hora de você aparecer. Eu sabia dos seus horários. Não era a hora que você costumava voltar para casa, Para a sua casa. Por um certo momento, eu quis que você me surpreendesse ali, no seu quarto, em cima da sua cama, nu e me mostrasse que eu estava enganado e que eu não te conhecia tanto quanto eu achava que conhecia. Queria que você tivesse me surpreendido em cima da sua cama, que você subisse em cima de mim e fizesse comigo tudo, aquilo tudo que a gente estava acostumado a fazer.   

 Bom, acho que no fundo, eu não te conhecia voce tão bem assim. Você me fez acreditar em uma porção de coisas, em verdades que você mesmo desconhecia. Acho que você não tinha tanta certeza sobre as minhas intenções, por mais que eu tenha deixado tudo às claras. Eu realmente fui pego desprevenido. Voce trocou de sentimento como quem troca de roupa. Você já tinha decidido sozinho sobre seu destino e que ele não me incluía. E eu atônito, fiquei sem reação, chapado com a sua decisão.

Eu tenho que ir embora. Não deveria me demorar tanto mais. Logo, você poderia aparecer, mesmo sabendo que ainda era cedo. Você não costumava chegar aquela hora. De qualquer forma, eu não queria que voce tivesse o desprazer de me reencontra e eu não tinha forças e álibis suficientes para explicar o porquê de ter passado aquela tarde toda na sua casa. Afinal, aquela era a sua casa. Um dia, tinha sido minha tambem.

Eu peço que um dia você ainda possa me perdoar. Eu peço que me perdoe por ter te fantasiado para que você coubesse no que eu imaginei de você ou no que eu imaginei de nos dois. Peço que me perdoe por ter desarrumado a sua cama hoje à tarde. Peço que me perdoe por ter alongado demais a minha existência junto a sua. Peço que me perdoe por ter passado tempo demais na sua casa. Era a sua casa. Já havia sido a minha.

Já não tinha muito mais o que fazer por ali.

Já ensaquei tudo que precisava. Peguei o que ainda me pertencia, coisas miúdas e sem importância. O que não coube na mala e nem em mim, fui obrigado a jogar fora. Joguei longe. Não porque eu quis. Foi necessário. Faz parte do processo. Muitas eu queria ainda conservar. Achei melhor não. Acendi um incenso, enquanto me despedia daquele lugar que também já havia sido meu. Hoje era somente seu. Era a sua casa.

Antes que você surgisse cansado, estressado e tomado por mais um dia exaustivo de trabalho; fui me comovendo e me retorcendo pela falta que aquilo tudo já me fazia. Não que você se importasse. Mas eu me importava. Quando eu batesse a porta, daquela vez seria definitivo e aquilo tudo seria passado. Tudo aquilo terá sido ums parte de mim, que talvez, em alguns anos, nem eu mais me lembrarei.

Corri até a mesa do escritório, precisava pegar não sei o que, exatamente. Antes tivesse me esquecido. Lá, em cima da sua mesa, perto do seu computador, havia um presente, entreaberto, com um pequeno papel amarelo na tampa da caixa. Certamente, você já havia lido. Certamente, eu não deveria ter lido. Por que tive que voltar e dar de cara com isso? O que eu tinha mesmo que pegar lá naquele no escritório? Nem eu mesmo me lembrava mais. Mas me lembrarei eternamente do que havia sido escrito naquele pequeno pedaço de papel tão simbólico:

“Oi,  amor! Te amo tanto…

 Adorei a noite.

Quero repetir tudo com você.

Quero repetir a vida de novo com você.

Deixei a chave debaixo do capacho

Não vejo a hora desse dia acabar e eu poder estar em seus braços novamente…”

Infelizmente, o que eu acabara de ler não havia sido escrito por mim. Eu nao havia te deixado aquele recado e aquela não era a minha letra.

Bom, sinceramente, eu espero que um dia você possa me perdoar. Peço que me perdoe por ter chorado no seu banheiro. Peço que me perdoe por ter mais uma vez bagunçado a sua cama, a sua vida. Peço que me perdoe por ter chorado a tarde inteira na sua casa, dormido na sua cama. Afinal, aquela era a sua casa. E nunca mais voltaria a ser minha.

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