Café Da Manhã
Café Da Manhã

Café Da Manhã

Tinha sol.

Era cedo.

Acho que era ainda umas nove horas pela manha.

Café na mesa e você sentado na ponta dela. 

Ali era o seu lugar cativo e favorito.

Você ocupava outros lugares da casa perfeitamente também e voce bem sabia disso.

Mas ali, era onde voce cabia melhor. Era como uma pintura. Eu te admirava, de onde eu estivesse.

Voce sabia o quão expansiva era sua presença, e o quão notada era a sua ausência, diga-se de passagem.

Tocava Cassiano bem baixinho “A Lua e Eu”, no canto da sala, na vitrola que era de seu avô e que você tinha o maior orgulho de ter herdado.  

Você amava aquela vitrola.

E como explicar o que é uma vitrola para o mais jovens hoje em dia.

Melhor não. 

Cada um tem a geração que merece e os seus específicos artefatos.

Quem quiser que procure os seus proprios significados de deleite. O seu era a vitrola. O meu, definitivamente, era voce.

Eu amava assistir toda sua quietude desfolhando o jornal, enquanto acabava de preparar nosso desjejum.

A claridade inebriante daquela manhã adentrava por todos as frestas possíveis da nossa janela. 

Era uma luz de felicidade, que emoldurava o domingo como uma obra de Monet. 

Tudo era tão claro: o dia, as falas, as ideias, os pensamentos, você, eu e as nossas escolhas.

Era isso! Eu não tinha dúvida nenhuma durante todas essas manhãs.

Nessas manhas, eu confirmava mentalmente onde eu desejava estar no mundo e agradecia.

Nessas manhas, eu estava onde eu pertencia, onde eu merecia.

Eu ainda de roupão, você de cueca.

Já tínhamos xícaras nas mãos. 

Café preto pelando de quente, como gostávamos.  Dava para ver a fumaça dançando e flutuando para fora da xícara.

O aroma forte e o gosto encorpado.

Tudo isso nos envolvia e nos dava o exato sabor que aquela conversa matinal despretensiosa precisava. 

Costumávamos levar nossas oratórias até o final da manhã. 

Eram longas as nossas manhãs.

Entre manteigas, xícaras, queijos, torradas, sucos, leites, talheres e afins, haviam nossos olhares e nossos pensamentos sobrevoando os sabores daquela mesa.

Ali, naquela mesa, havia eu e voce, inteiros e disponiveis.

Tentávamos nos alcançar mutuamente, cada qual em sua devida ponta de mesa. 

Conversávamos sobre tudo, quase.

Era um belo ritual. 

Alias, eu confesso que gostava de ritualizar praticamente todos esses momentos em que sabia que seríamos somente eu e voce.

Queria que você aproveitasse ao máximo, da mesma forma que eu o fazia.

Era uma celebração simples e privada. 

Estávamos satisfeitos e plenos pelo fato de dividirmos aquele mesmo espaço fisico.

Ali, juntos: eu, você e mais ninguém. 

Ah, nao! Esqueci de mencionar. Tinha o Russo, na verdade. 

Nosso Golden Retrivier.

Ele era a nossa única testemunha ocular, nosso único álibi, nosso comparsa, nosso filho. 

A essa altura, ele ja tinha iniciado a correria desenfreada dele pelo gramado que eu conseguia visualizar logo após o seu rosto que seguia sempre em primeiro plano. 

Enquanto eu te admirava com o bigode cheio de creme do seu café, via o vulto loiro de Russo que insistia em espalhar, com euforia, a grama verde do quintal.

Eu também ficava eufórico, embora inerte à sua frente.

O mundo podia acabar ali, naquele momento. Eu pouco me importaria. 

Por vezes, pensei que acabaria mesmo, tamanha era a plenitude daquele momento. 

Nada nos fazia querer saber o que se passava fora daquela realidade utopicamente criada por nós dois. 

Era eu e você dentro da nossa bolha. Ah e o Russo!

Parecia que o tempo tinha parado e nós estávamos completamente imunes as atrocidades e verborragias desnecessárias do mundo exterior.

Cabia ali, só o amplificar dos nossos proprios ruídos ou do nosso singelo silêncio.

Às vezes, sem uma única palavra, entre um gole de café e outro, nos fitávamos calados.

Nesse momento, nos entendíamos ainda melhor do que quando haviam palavras para emoldurar nossos sentimentos.

Muitas vezes, depois do café, depois dos discursos, depois dos acertos, depois dos acordos; vinha o atrito do meu corpo contra o seu. 

Aquilo também fazia parte do protocolo daquelas manhãs. 

Em segundos, bastava uma mirada e simultaneamente já captávamos as nossas intenções. 

Rapidamente, eu já te tinha dentro de mim ou vice-versa.

Ali, éramos um. 

Aquelas sessões, logo após o café, eram as minhas preferidas. 

Sucumbíamos aos nossos instintos, dando asas ao que o nosso corpo, em comunhão, solicitava.

Era forte, porém suave.

Era lento, porém prazeroso.

Tinha vigor e tinha paixão.

Tinha tesão, romance, carinho, prazer, desejo, cuidado, sorte, sabor e o que mais se necessita para viver. 

Tinha água, fogo, terra e ar.

Fôlego, às vezes, nos faltava.

Nunca faltou vontade de se ter mutuamente.

Nunca faltou café. 

Ia muito além do café.

Era amor em estado bruto.

Era eu em cima e você no esquadro.

Nós em paralelo.

Era uma geometria adequada . 

Era o encaixe exato de dois corpos em perfeito movimento.

Era o compasso de uma sonatina recém aprendida mas muito bem executada. 

Era fácil adivinhar o que se queria. Era via de mao dupla. Era entendimento. Era entretenimento. Era sintonia e sincronia

Estava tudo ali, disponível e ao alcance das nossas mãos. 

Era amor o que nos guiava…

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