A Tua Voz
A Tua Voz

A Tua Voz

Então havia de ser assim?

Havia de ser como você queria, unicamente?

Havia de ser uma decisão unilateral?

 Você decidiu por nós dois. Tanto fazia o que eu desejava. O que eu desejava já não era mais, efetivamente considerado um desejo. Dane-se os meus desejos. Jogo no lixo o que eu sinto, o que eu quero, tudo porque para o “Todo Poderoso” basta o que ele quer.

Teria de lidar sozinho com os meus desejos, mesmo que eles incluíssem você.

Em que momento você desistiu de desejar o mesmo que eu?

Não caberia a mim responder uma incógnita que não havia sido criada por mim. Porque eu tinha certeza do que eu queria. Minha vontade sempre foi a gente. Sempre pedi por nos dois. Nunca houve somente eu, ou somente você. Na minha cabeça tudo andava junto. Era tudo um amontoado de nós.

Tropeçar em ti, pela casa, era uma rotina que me agradava. Eu sonhava em esbarrar em ti desde o primeiro segundo do meu dia. Eram teus olhos que eu procurava assim que eu abria os meus. Pela manhã, era apropriado sentir o cheiro vindo de qualquer parte do teu corpo. Eu amava o cheiro que exalava dos teus poros. Insuportável, eram as noites que você não se encaixa em mim, por motivos múltiplos. Essas eram noites de pesadelos eternos. Meu corpo se acostumou ao teu. Massivamente condicionado a sua presença.  

Desde quando havia um outro alguém?

Sempre houve um outro alguém quando você se afastava de mim?

Era falta de coragem o teu desamor?

Eu só achava que era necessidade de você garantir a sua privacidade ou o seu próprio espaço. Sempre te disse que embora juntos, eu reconhecia o direito de ambos promoverem suas vidas e liberdades individuais. Eu desejava comumente que você voltasse para o seu lugar quando precisasse de um colo e de um abrigo. Eu era o seu lugar. Ao menos eu achei que seria ou que deveria ter sido. Enquanto eu pudesse, eu teria sido. Esse era o meu plano, ser a sua morada, eternamente.

Você sabia que eu podia ser o seu melhor lugar. Dentro de mim você sempre teve um lar. Eu te abrigava, independente de qual fosse o seu dessabor externo e particular. Eu te servia em acolhimento. Eu havia te prometido bem mais do que a quentura de um corpo. Eu estava inteiro e feliz e disposto.

Quando foi que esse outro alguém surgiu?

E por que você permitiu?

O que te faltava?

Quando foi que o amor saiu pela porta afora?

Tantas perguntas e nenhuma resposta. Na verdade, nem eu sei se as quero mais. Conviver com a tua ausência já tem sido suficientemente excruciante e terrivelmente mordaz. Ouvir qualquer meia-verdade, ou mentira ineficaz proferida covardemente pela boca de um desertor, seria a minha sentença de morte.

Nossa cama se tornou um lugar vazio, inóspito e nada seguro para o aconchego dos meus sonhos, muito porque a maioria deles ainda se compõem pela sua vívida presença. Não sei mais quando conseguirei remontá-los sem que você esteja neles. Haverá de ser uma tarefa árdua, porém necessária.

A tua voz é o que mais me faz falta.

Sinto saudades de ouvi-lo. Sempre fui o que mais falei entre nós dois, e você pacientemente sempre me esperava terminar para esboçar qualquer ponta de raciocínio relevante e me dizer resumidamente o que você faria no meu lugar. Você era delicado e perfeitamente solícito. Eu via você me escutar com os olhos. Enquanto eu falava, você me olhava fundo. Sentia sempre que você já tinha uma resposta pronta ao final de cada discurso meu.

A tua voz era suave. Não havia exasperação da sua parte para que eu terminasse qualquer argumento. Você me cedia o tempo que eu precisava para que eu elaborasse as minhas mais loucas ideias. Você, pacientemente, ficava me olhando, girava sua taça de vinho, o cheirava pela borda do cristal e dava um leve gole naquele que era o seu líquido preferido. Ao final daquele gole, eu expectava o balbuciar lento dos teus lábios, soltando sons que somente eu entendia. Seus lábios em movimento era a imagem que eu mais aguardava ao final de cada pergunta minha. Eu era seu expectador assíduo e cativo. Você era o meu filme preferido. Eu te escutava em silêncio e observa os seus trejeitos curtos e ponderados. Você usava bastante as mãos quando falava. Sua fala e seus gestos se complementavam. O balanço do seu corpo enquanto se pronunciava era uma dança que meus olhos amavam presenciar.

Amava te olhar no canto do sofá, descalço, meia luz, calção de pijama, sem camisa, quieto, pensativo. Pensava que era uma pintura. Pensava que eu havia te pintado de tão perfeito que era aquela cena. Imaginava que o mundo lá fora já não existia mais, e podia não existir mesmo, porque tudo o que me importava estava ali dentro, tudo que eu desejava estava ali comigo. Gostava de pensar que eu era um cara de sorte.

Passei a não caber mais nos espaços e buracos que você havia deixado para trás. Tudo havia se tornado tão gigante dentro daquela casa a partir do momento em que você me ofereceu as suas costas. Eu ainda escutava a sua voz baixinha por todos os cantos, mesmo depois de você ter deixado a sua ausência bem evidente. Não sabia ao certo de onde vinha o som da tua voz, mas eu tinha certeza de que era a tua voz. Ecoava alto dentro de mim. Todas as noites, eu sofria calado com a falta do emaranhado dos pelos do teu peito, com a falta das tuas pernas nas minhas, dos teus braços em torno daquilo que também era seu. Noites de frio eram ainda piores. Se chovia era quase mortal. Durante a chuva, entre raios e trovões, eu gritava o teu nome, na tentativa de te materializar. Tudo era em vão. Você já tinha ido e não havia mais desejo que fizesse isso se tornar realidade. O seu retorno não havia de ser mais uma possibilidade.

A tua falta me doía nos ossos, doía cada vez que eu tentava te alcançar e minha mão afundava no lençol branco e gelado do lado que você ocupava e hoje já não ocupa mais. Todas as noites eu repetia esse mesmo movimento e todas as vezes eu constatava a mesma coisa, você não havia voltado. Todas as noites o vazio que vinha daquele lado da cama me dilacerava de morte. A tua falta me cortava em pedaços cada vez menores.  Eu ia diminuindo, me tornando cada vez menor e em torno de mim, aquela cama ia se agigantando. Eu me tornei um pó cósmico perdido naquele universo de tecido branco. Eu te direcionei a minha vida e me desgovernei. 

A tua voz miúda ainda reverbera em mim e em cada canto que você abandonou. Por vezes, te ligava na tentativa de minimizar a dor que me usurpava o direito de viver. Era na tua voz serena que eu queria, de novo, encontrar o meu conforto. Por vezes, eu não falava nada e deixava você dizer um breve alô. Aquilo já era mais do que o suficiente para eu ter a certeza da sua existência. Para mim, bastava saber que você vivia, ainda que fosse longe de mim.

Eu me alimentava das migalhas dos teus sons e das tuas lembranças que em mim ficaram. A tua voz pequena era o meu combustível diário, a minha endorfina, o meu motivo e a minha razão.

Nessas vezes em que eu te ligava apenas para escutar a tua voz, eu não precisava falar absolutamente nada e você sabia exatamente quem era do outro lado da linha. Você entendia o meu suspirar agoniado de tristeza. Isso se repetiu algumas outras vezes sem que você reagisse em prol do meu consolo, do meu bem-estar. Você já havia superado a muito tempo a minha ausência. Achava aquilo inaceitável. Você alienou o meu direito de te amar. Você já tinha a sua vida no trilho de novo. Eu patinava no gelo da sua indiferença, tentando me manter de pé sem qualquer segurança, sem nenhuma garantia.

Você nunca mentiu sobre esse outro alguém. Eu te notei indo tímida e gradativamente. Achei que fosse coisa da minha cabeça. Eu demorei a enxergar. Talvez, pela sua quietude, não percebi os sinais. Talvez, eu tenha falado demais e deixado pouco tempo para que você pudesse se expor as suas inquietações, suas queixas e suas faltas. Eu imaginava que éramos felizes e que tínhamos uma dinâmica adequada e muito bem formatada. Sinceramente, hoje percebo que percorri um caminho que era somente meu. Estávamos em estradas opostas, quando dei por mim, já era tarde. Você já estava longe, daí eu já não te enxergava mais.

A tua voz ainda habita em mim. Ela está enraizada e ainda produz ruídos torturantes. Ela entoa baixinho em várias notas, mas quem grita sou eu. Não pretendo que você ouça. Uma hora passa. Amanhã talvez. Na próxima semana. Ou no próximo ano.

Quem sabe?

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