Quarta-Feira
Quarta-Feira

Quarta-Feira

Já tinha perdido as contas de quantas vezes eu tinha te mandado embora. Em nenhuma delas, efetivamente, eu queria que você fosse. Inconscientemente, ou até pelo seu jeito brincalhão, você, de fato, nunca me levou a sério. Você achava que era só mais uma briga, um chilique, como você costumava dizer. Revirava a bola dos olhos para cima, dava de costas e me deixava falando sozinho. Sabia o quão deliciosamente irritante você era.

Talvez você estivesse certo. Eu só o fazia da boca para fora. Cuspia e deseja a sua ida só para me livrar daquela raiva momentânea, daquele ódio passageiro. Bem verdade que você sabia que você cabia em mim de todas as formas e jeitos. Eu assumo: era da boca para fora mesmo. Só podia ser da boca para fora. Dizia que queria que você me esquecesse, mas me paralisava a cada vez que pensava que isso podia, um dia, acontecer. Eu desconhecia o andamento do mundo sem você orbitando ao meu redor. Esquisito pensar que a Lua não brilha sem que o Sol lhe empreste sua luz. Será que somos assim, feito a Lua e o Sol? Será que você pensa assim a meu respeito? Somos mutuamente e alternadamente a nossa Lua e o nosso Sol?

Ainda me lembro do dia que, por conta daquela chuva, você finalmente apareceu na minha vida. Já estava tão consumido e desacreditado do amor. Outras decepções haviam criando-me couraças. De verdade, já não mais esparava algo tão forte e avassalador. Não acreditava mais em casos de pessoas perdidamente apaixonada, a não ser em filmes e nas poesias que eu mesmo insitia em criar. Escrevia sobre o amor, mas não acreditava em uma so palavra redigida. Eu era uma fraude como escritor. Falava sobre o amor, porém, na pratica, eu era uma mentira. Eram frases soltas, meio cliches de alguem amargamente quebrado por fatos anteriores a você. Posso dizer que você me refez.

Não acreditava que mais uma vez eu pudesse olhar para alguém com aquele brilho no olhar. Mas você era desconcertantemente charmoso. Ainda é. Fazia e faz questão de ser, a cada momento, mesmo quando não lhe dão a mínima. Acho que é um charme natural. Melhor que o seja. De fato, o era.

Uma das coisas que mais me chamavam a atenção em você era a espontaneidade. Lembro de ter me apaixonado, primeiramente, pelos seus cabelos ondulados. Estavam encharcados, afinal, estávamos debaixo de uma verdadeira torrente. Você gentilmente me cedeu seu frágil guarda-chuva. Eu prontamente aceitei.

Era uma quarta-feira despretensiosa. Já perceberam como todas as quartas-feiras são despretensiosas. Nada de magistral acontece numa quarta-feira. É meio da semana, as pessoas ou estão se recuperando de um final de semana agitado ou se preparando para um final agitado. Pessoas “normais”, geralmente guardam forças e orçamento numa quarta-feira. Quarta-feira são péssimas para acontecimentos. Na quarta-feira, tem, no máximo, um jogo de futebol na televisão. Eu, particularmente, nunca fui de futebol ou quartas-feiras. Nunca presenciei nada de bom acontecendo numa quarta-feira. Quartas-feiras não são marcantes, definitivamente. Pedimos para que as quartas-feiras sejam esquecidas ou que pulemos direto para a sexta. Quintas-feiras são verdadeiras incógnitas. Estão próximas do final de semana, portanto é possível que os ânimos estejam mais calibrados e algo já pode timidamente acontecer. Agora, quartas-feiras são mortas.

Aquela não seria uma quarta-feira qualquer. Já nem me importava mesmo com aquela chuva toda. Suas mãos estavam sobre meus ombros. Você me trouxe para perto para que coubéssemos os dois no seu minúsculo guarda-chuva. O guarda-chuva era frágil, as mãos acolhedoras e os ombros mais reconfortantes que eu já atrevi a me encostar na vida. Imediatamente me reconfortei ao teu lado e percebi que tinha o tamanho exato para caber tanto nas mãos quanto nos ombros. Não vou mentir que esbocei um sorriso de canto de boca e naquele momento decretei que era ali o meu lugar no mundo.

Estava meio aflito com a insistência das gotas se repetindo no meu paletó. Era novo e caro. Tinha sido presenteado pela minha mãe. Naquele dia tive uma reunião importante e achei propício ostentá-lo, justo naquele dia chuvoso. O seu paletó também estava ensopado e você não se preocupou. Sua atenção estava voltada para o meu bem-estar, ainda que você não saísse ileso daquela tempestade. Não perdi a oportunidade, já me fiz seu ali, naquele momento.

Daquele dia em diante, passei a ver a chuva com outros olhos, e as quartas-feiras. Ambos já não me incomodavam tanto, nem as tempestades e tampouco os meios-de-semana. Eu tinha alguém com quem dividi-las. Nossas vidas foram se acertando. Nos enquadramos. Começamos, pouco a pouco, a nos pertencer. Geramos um núcleo familiar. Meio moderno aos olhos dos demais, mas genuíno. Essa era a nossa constituição: Eu e você, em princípio.

Construímos tantas coisas juntos. Conhecemos o mundo e um mundo de pessoas diferentes chegou até a gente. Brigamos. Fizemos as pazes. Escutamos Alanis Morissette juntos tantas vezes, enquanto tomávamos nosso vinho preferido, na nossa poltrona preferida. Você dizia que ela tinha a mesma raiva contundente de uma Janis Joplin. Percorremos caminhos sociais que alguns jamais pensaram desbravar. Fazíamos parte de uma certa representatividade demandada. Nos viam como exemplos. Nunca soube concluir se isso era bom ou ruim. Por muitas vezes, me senti lutando uma luta que não era somente minha. A nossa existência passou a ser vista como um ato de bravura, dentro de um tempo de hostilidade para com todo e qualquer assunto. Lutávamos uma luta nossa e diária, mas que também era uma luta de milhares. Lutávamos em nome de muitos outros que precisavam se espelhar num modelo real de felicidade. Muitos viam em nós a possibilidade de contrariar o que se ouvia comumente. Éramos parte de uma nova ordem que não tinha nada a ver com o modelo tradicional, mas que também podia ser escolhida e que também significava algo de sucesso. Vimos pessoas felizes com a nossa felicidade. E tinha tambem aqueles que se incomodavam com o simples fato de nos amarmos. Era estranho. O amor nunca deveria ser uma coisa a ser negada, independentemente das questões que o envolva. Sentia-me sobrecarregado, às vezes. Mas eu tinha você. Você estava ali o tempo todo. Você era mais tranquilo com essas questões.

Sempre invejei a sua capacidade de não prestar atenção nas palavras alheias e de conteúdo adversos e até meio rudes. Você sempre foi o mais firme e resoluto de nós dois.  Você era imbatível e cheio de argumentos necessarios, enquanto eu já me deixava atingir mais pelas opiniões e olhares do mundo.  Você se mantinha ileso. Eu tinha medos que você jamais imaginou ter. Mas eu não temia mais tempestades e nem quartas-feiras. Com o passar dos anos, eu até torcia para que chuvas e quartas-feiras fossem mais frequentes. Queria sempre chuvas nas quartas-feiras. Pessoas tinham que prestar mais atenção em chuvas e nas quartas-feiras. Era nesses dias que eu voltava a me encolher em teus ombros e pedir pela tua mão, e isso tornava tudo muito mais fácil.

O tempo passou depressa. Nos tornamos o que desejamos. Transformamos vidas, as nossas inclusive. Plantamos sementes e, que hoje, junto com nosso amor; finalmente floresceram. Éramos reais e nos tornamos ainda mais sólidos. Estávamos fincados em solo fértil e suportados for raízes fortes. Gostava de comparar nossa relação com aquelas arvores centenárias, de tronco infindável e robusto, aquelas que é necessário envergar o pescoço ao máximo para trás para que se consiga ver sua copa verde e frondosa. Assim eu sentia quando te olhava e quando lembrava daquela quarta-feira despretensiosa e chuvosa.

Eu tinha um ritual. Você achava engraçado, mas consentia. Toda vez que, em uma quarta-feira, chovia; eu adorava decretar feriado. Era um feriado só nosso. Era uma celebração íntima em que eu agradecia o universo e as suas forças naturais (ou sobrenaturais) por terem permitido o nosso encontro. Tentava reviver aquela sensação de ter sido encontrado e acolhido. Era uma forma de te devolver aquele gesto de ternura. Você, menos romântico, aproveitava para tirar proveito dos meus dotes culinários. Sabia que eu prepararia algo muito especial. Você estava certo. Depois, você me amava como pela primeira vez. Desde que te encontrei, quartas-feiras nunca mais foram despretensiosas ou vazias, mesmo que chuvosas.

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